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Castro, Augusto Mendes
Noticia histórica e
Se Velha de Coimbra
Simões de
descriptiva da
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NOTICIA IliSTORICA E DESCRIPTO
DA
SÉ VELHA UE COIMBRA
SÉ VELHA DE COIMBRA
NOTICIA
HISTÓRICA E DESGRIPTIVA
DA
(COM UM\ PHOTOGRAPHU)
POR
AUGUSTO MENDES SIMÕES DE CASTRO
BACHAUEL FOUMADO EM DIHEITO PELA UNIVERSIDADE DE COIMBRA
SOGIO EFFECTIVO DO INSTITUTO DA MESMA CIDADE
SÓCIO CORRESPONDENTE DA REAL ASSOCIAÇÃO DOS ARCHITECTOS CIVIS
E ARCIIEOLOGOS PORTUGUEZES.
^>->-^^-^^^
COIMBRA
IMPRENSA ACADÉMICA
1881
A/5
CcC3
ACILIO AUGUSTO DA FONSECA PINTO
JD.
em testemunho de cordial amizade
Augusto Mendes Simões de Ca^tro^
Digitized by the Internet Archive
in 2011 with funding from
University of Toronto
http://www.archive.org/details/noticiahistoricaOOcast
A SÈ VELHA I)E COIMBRA
Cct edifico prouve, malgré les déí.mts
de Tensemblo, qu'en tout temps l'ar-
chitecture e élé caltivée avec succès en
Portugal.
Les Arts kn Portugal, pelo condo
A. Raczynski, pag. 460.
Qnasi a meia encosta do monto em que assenta
Coimbra levanta-se o majestoso templo da sé velha,
um dos monumentos mais notáveis do Portugal.
Antiguidade veneranda, aspecto nobre e grandioso,
bellezas e excelloncias do architeetura, delicados e
primorosos trabalhos artísticos^ rostos de pessoas il-
lustres que encerra este edifício, recordações de me-
moráveis acontecimentos a elle ligadas, tudo concorro
para fazer celebro e importantíssima esta velha ca-
thedral.
s
A'cerca da origem d'este vetusto momimento têm
corrido diversas o encontradas opiniões. Vasta-^ intel-
ligcncias, ao contemplarem a face austera da velha
sé conimbricence, têm duvidado se aquellcs fortes e
valentes muros foram alevantados pela nobre raça
dos godos, ou se pelos bellicosos filhos de Allah. Por
muito tempo se inculcou esta egreja uma mesquita
de mouros convertida ao christianismo. Para esta
ultima hypothese fazia propender a muitos uma in-
scripção árabe, descoberta numa pedra da fachada
soptcntrional. Algumas memorias manuscriptas da-
vam esta sé como edificada polo bispo D. Gonçalo
(1109 — 1128); diversos escriptores a attribuiam ao
conde D. Henrique.
A verdade é que a sé velha foi erigida pelos cui-
dados do bispo D. ]\Iiguel, reinando el-rei D. AíFonso
Henriques. E' facto este de que nao se pode duvidar
depois que se tornou conhecido um documento, quo
assim nol-o attesta, exarado no Livro Preto (a). Só
elle basta para invalidar os argumentos dos que at-
tribuiam ao templo que hoje subsiste origens mais
remotas. E, quando nao fora este documento, o pro-
blema ficava resolvido claramente pelas indicações
do cstylo e caracteres architectonicos do edificio, os
quaes, como diz muito bem o sr. dr. Augusto Filippe
Simões, equivalem em muitos casos a uma certidão,
que, sem designar o anno, declara com certeza o sé-
culo em que o monumento foi construido.
Estudou a questão por esta forma o mesmo sr. dr.
Filippe Sim5es no seu precioso livro Reliquias da
Architcctura Romano- Bysanti na em Portugal e par-
ticularmente na cidade de Coimbra, Classificou o es-
tylo do monumento no romano-bysantino terciário,
(a) Pôde ver-se este documento na Noticia Histórica do Mos-
teiro da Vacariça, por Miguel Rijjejro de Yascoíicellos, P. 2.",
pag. 77,
usado de 1100 a 1200; conclusão a quo foi levado
pela perfeição da esculptura nas archivoltas, nos ca-
piteis o nos ornatos de toda a espécie, e pela compa-
ração da egreja da sé velha com a de S. Christovão,
cuja origem era conhecida. «Em ambas a plantas
similhantes correspondem frontispicios e absides simi-
Ihantes. Em ambas a parede sai fora nalgumas par-
tes, formando uns como gigantes, som todavia o pa-
recerem. Em ambas os arcos das portas principaes
ficaram separados das janellas superiores por corni-
jas. Em ambas se guarnecem as paredes de ameias.
Em ambas, finalmente, se nota extrema similhança
nas archivoltas o seus ornatos, nos capiteis, columnas,
otc. De modo que a todo o archeologo parecerá obvio
terem sido construidos estes dois templos na mesma
epocha e pelo mesmo architccto, ou ao menos por ar-
tistas da mesma eschola» (a).
O documento do Livro Preto a que acima nos re-
ferimos foi commentado pelo sr. Rebello da Silva era
um curioso artigo inserto t\o Panorama de 1853, do
qual passamos a fazer alguns extractos:
«As obras começaram com donativos dos cónegos
e do bispo. Além de grossa quantia de dinheiro, o
prelado concorreu com uma formosa junta de bois,
avaliada em doze morabitinos (pouco mais ou menos
19^200 réis). O architecto Bernardo, dez annos di-
rector das construcçoes, recebeu 124 morabitinos
(I98i!>400 réis) comendo á mesa do bispo^ e tendo
annualmente um vestido completo na valia de 3 mo-
rabitinos (4?{>800 réis). Apezar da importância (para
a epocha) d 'esta remuneração, mestre Bernardo es-
tava longe de ser um engenheiro irreprehensivel. Cor-
rendo as contas das despezas nota-se uma verba ap-
(a) Relíquias da Architectura Romano- Bysantiiia em Portu-
gal, pelo sr. (Ir. Augusto Fillipe SiiBoes,
iO
pUcada no pagamento do outro architecto, Roberto
de Lisboa, quatro vezes chamado a Coimbra para
emendar a obra, e sobre tudo para se incumbir do
trabalho do portal. Este antecessor de Miguel Angelo
trazia comsigo um estado de quatro moços e quatro
jumentos, que o bispo pelo contracto estava obrigado
a sustentar, cousa menos fácil do que pode figurar-
80. Alem da cevada, do pão, e da cai-ne e vinho ne-
cessários para o consumo dos homens e dos asnos, o
mordomo episcopal pagou a mestre Roberto a sorama
avultadíssima, visto o preço do dinheiro naquello
tempo, de 1:Õ10 morabitinos (2:41G,:>000 réis!). O
architecto Bernardo, que, sob a tutela do mentor do
Lisboa, dirigia a obra, falleceu durante ella; e o seu
successor mestre Soeiro, varão monos importante ao
que parece, não obteve as honras lucrativas do talher
á mesa do bispo, dando-se-lhe em compensação um
vestido por anno, um quintal de vinho, e um moio
de pão.
«O architecto Roberto^ incumbido do desenho e la-
vor do portal e da correcção da obra, não foi o único
artista de fora que vciu trabalhar na sé de Coimbra.
Entre outros apparece um estrangeiro, mestre Ptolo-
meus (nome byzantino), como auctor do famoso retá-
bulo dourado do frontal, o do quadro com lavores de
ouro da Annunciação da Virgem. Ptolomeus tinha
por anno lõO morabitinos (240í>000 réis), e o ourives
Félix, que foz o jarro e a bacia de prata para o ser-
viço da missa, recebeu pela mão de obra 7 morabi-
tinos (lliS200 réis). Tanto na composição e ornato
das aras e columnas do altar de Santa i\Iaria, como
no pavimento das absides, lagcado do mosaico em
xadrez, dispcnderam-sc 40 morabitinos (64:>000 réis\
A cruz de ouro tino, dadiva do bispo, era a maravi-
lha do templo. Algumas lascas do sancto lenho, em-
butidas no metal precioso, o duas laminas tiradas da
11
pedra do monto Calvário, ternavam-na extremamente
devota. Em uma das laminas, ao moio da cruz, es-
tava esculpida com grande primor a figura do Christo
crucificado; e do outro lado a da Mator Dolorosa. A
generosidade do bispo nao se limitou a esta bella of-
ferta. Sào innumeraveis as dadivas de vasos, vesti-
mentas, o jóias cora que enriqueceu o thesouro da ca-
thedral, {Subsidiando a? obras, e estimulando-as de
dentro mesmo da cella do Sancta Cruz, aonde se ti-
nha recolhido padecendo do uma enfermidade aguda.
«Nno respiram toda a singeleza da meia edado es-
tas noticias lançadas por um cónego no registo da ca-
thedral? AqucUe architecto que o bispo assentava á
sua raesa^ e ao qual dava um vestido todos os annos,
nâo provará a estimação das artes? A vinda de mes-
tre Roberto para emendar as obras e presidir ao la-
vor do portal, sendo ello estrangeiro^ como o nome in-
dica, não nos explica a ar de parentesco do alguns
monumentos nossos com os de fora do mesmo periodo?
Naturalmente o architecto chamado de Lisboa perten-
cia á raça do norte, tendo vindo em qualquer das
frotas de cruzados, que entravam frequentemente no
Tejo. Se a conjectura não é arriscada, acha -se mais
do que provável que o bispo, desejando que a nova sé
se levantasse egual na perfeição e na grandeza aos
edifícios religiosos da epocha, não poupou sacrifícios
para corrigir e aformosear a sua cathedral pela mão
d'um artista, formado na eschola que produziu as
bellas epopeias de pedra da França, da Inglaterra e
da Allemanha. Com este, mestre Bernardo podia
aprender sem pejo; e Coimbra, acabado o templo, não
seria orgulhosa exclamando: «a nenhum inferior no
reino!»
«De feito ha na sé de Coimbra um caracter inde-
lével. E' a magestade sacerdotal na sua expressão
©levada, Mesmo depois das renovações do bispo
12
D. Jorge de Almeida em 1540 e do bispo Affonso do
Castello Branco no século 17.**, o sentimento que pre-
domina ainda é o da arte menos florida e mais crente
do século da fundação. O typo austero conserva pura
e intacta a severa belleza apesar dos estragos e das
reparações succcssivas. Rodeada de uma coroa de
ameias, fortificada com as duas torres meias guerrei-
ras, meias devotas, a antiga cathcdral, como os seus
primeiros pastores, era a imagem da egrcja militante.
Esta armadura de pedra assemelhava-se á couraça
envergada sobre as vestes clericaes pelo bispo e pelos
cónegos nos dias de conflicto. Por íóra estava o cas-
tello; por dentro a casa de Deus, aonde a fé aos pés
da cruz se abraçava com a esperança!
«O que acabamos de expor era resumo foi textual-
mente extrahido do Livro Preto de Coimbra, de um
documento intitulado Mimdatio testamentomm sive
hereditatiim sedis S. Marie Colímbriensís. Por ello
é que se descobriu aproximadamente a epocha da fun-
dação da sé, e as principaes circumstancias da sua
origem e structura. Collaça da monarchia, e filha de
Afíbnso Henriques, a cathedral, se nào remonta aos
godos e aos árabes, nasceu era um período sagrado
pela victoria, e heróico pelos prodígios de valor e do
abnegação, que o ennobrecem. A lenda que poetica-
mente queria levar a sé a uma antiguidade fabulosa
expirou diante da historia, como vacillava já perante
o raciocínio critico. Era escabrosa na realidade de
concordar a remota existência attribuída á cathedral
com a destruição completa de Coimbra! Só um mila-
gre conseguiria, que reduzida a ruínas a cidade es-
capasse da assolação o monumento religioso para jus-
tificar os brazões archeologicos, inventariados pelos
seus genealogistas».
Puas faces çstão patentes d'este antigo templo. An^-
13
bas de cantaria, coroadas de ameias e tisnadas dos
séculos, apresentam uma apparencia singular, que
causa sempre no visitante que as contempla uma im-
pressão grave e profunda.
A frente principal, que lança ao poente, o que of-
ferece de mais interessante é o magestoso pórtico do
mestre Roberto. Apesar de muito carcomido pela diu-
turnidade de sete séculos, ainda se divisam nelle o bom
gosto e nobreza da sua architectura. E' saliente do
resto da fachada, e formam-no vários arcos de cin-
tro pleno, firmados em coluranas, da maior parte das
quaes só restam as bases e capiteis. Superiormente
está uma tribuna formada também por columnas e
arcos similhantos na traça e lavores áquelles sobre
que assenta. A ornamentação das bases, fustes, ca-
piteis e arcos, tanto da porta como da tribuna e a
das misulas que ficam inferiores a esta, é muito va-
riada, correcta e de apurado gosto.
Esta fachada já não se conserva intacta segundo
a sua traça original. Destoam d^ella as duas grandes
janellas que se vccm aos lados do pórtico, mandadas
rasgar peio bispo D. João de Mello, que governou a
diocese de Coimbra desde 1684 até 1704: (a). Em
1839 derribaram-se algumas ameias d'esta fachada
e acrescentou-se-lhe um campanário, em cuja construc-
ção se empregaram pedras do próprio edificio. Não
lhe valeu esta precaução para que se não distinga do
resto da frontaria. E' um pejamento ridículo que
adulterou vergonhosamente o caracter venerando da
fabrica primitiva.
A fachada septentrional é digna de ser examinada
com toda a minuciosidade. Logo junto da esquina
(a) «Attendeu muito ao adorno da sua sé, abriu-lhe novas ja-
nellas, levantou a torre grande, que ameaçava ruina e ornou o
coro e capelias com ricas armações e retábulos». Fonseca, Évora
Olçriosa,
u
Occidental attrae a attençao do observador uma arca
de pedra com lavores e letreiro, levantada do chão
a pouco mais do um metro. Foram alli depositadas
as cinzas do cônsul D. Sesnando, governador de Coim-
bra em tempo de el-rei D. Fernando Magno de Leào
(1064) e as de um sobrinho seu. D. Sesnando era
filho de David, rico mosarabe da que depois se de-
nominou provincia da Beira, senhor de Tentúgal o
de outras terras no território de Coimbra. No tempo
de Iben Abbad introduziu-se na curte de Sevilha, o
por seus talentos e bons serviços feitos ao príncipe
sarraceno chegara a occupar o logar do wasir no
diAvan, isto é, de ministro ou membro no supremo
conselho do amir, o qual o distinguia particularmente
entre os seus conselheiros. D. Sesnando era temido
nas guerras com os inimigos de Iben Abbad, porque
nas empresas que dirigia alcançava sempre resulta-
dos prósperos. Crê-se que alguma oftensa recebida
dos sarracenos o fez abandonar o amir de Sevilha o
entrar no serviço de D. Fernando Magno (a). Foi
D. Sesnando que incitou o monarcha leonez a prose-
guir para este lado do occidente as suas brilhantes
conquistas com a tomada de Coimbra, e nesta em-
preza foi um dos capitães que mais se distinguiram
por assignalados serviços. D. Fernando Magno, re-
tirando-se para os seus estados, recompensou galhar-
damente os serviços de D. Sesnando, entregando-
Ihe Coimbra com o seu território e investindo-o de
plenários poderes para exercer o supremo governo,
administrar justiça, repartir e dispor como lhe aprou-
vesse dos terrenos conquistados (6).
(a) Alexandre Herculano, Hist. de Port., t. 1.°, liv. !.«>
(b) Tempere illo quo Sorenissiinus Rex h. Fernandus ego Côn-
sul Sesuandus accepi ab illo pctestatem (loliinbrie et oníniuin
('ivitatuin sive (^astelloruni que sunt in oinni circuita ejus sei-
Ucet ex Lauieco usque ad maré per aquani ílununis Uurii usque
Í5
Conliece-so uraa infinidade de documentos que se
referem ao governo do conde D. Sesnando e aos po-
deres por clle exercidos. Nesses documentos apparece
nomeado com esta variedade de titulos: alvazir^ co-
meSy consulj procônsul, domiims, dux, guhernatovy im-
perator^ prcases (a). D. Sesnando poz particular cui-
dado nTio S(} em conservar, mas em alargar os seus do-
mínios, conquistando aos mouros algumas terras impor-
tantes. A agricultura foi por elle consideravelmente
desenvolvida. Restaurou e fundou varias cgrejas; reedi-
ficou, fortaleceu e povoou muitas terras e castellos,
entre os quaes se apontam Monte-Mór-o-Velho, Soure,
Tentúgal, Pendia e Arouce. Fallecou eai 'Zò de agosto
ad términos quos Christiani ad Auslruni possident. . . detlit que
predietus Rom niiclii siipradictarii terram totaiii ad edilicanduin
et populaiiduin et íacieiíduin ciiiicía que bene visa fuerint. . . —
Docuuieiito reproduzido por João Pedro Ribeiro nàs Dissertações
Chronoloijicas, t. 4.", P. 1,^, pag. 142.
Sub tríuo et jiejpetim niaueutis nomine uno palris et fdii et
spiritus sancti. In era mCii^ inlravit rex doainus fredenandus
cui sit beata requies iu civitateni coliuíbriain. custodiat ilbun deus.
et prehendivit eau) de trjbuj)us bisniabelilaruni et lornavit eam
ad gentcm xpianoiuni cum adjutorio onínipotentis dei. Deinde iu
diebus illis erexit ipse honorilicus rex predietus principein ibi
níagnuin duceni et consuleni íidelem domnuin sisenanduin. quem
domiiuis undique exaltet. super ipsam civitatem ut eam popu-
lasset et deíendisset de gente paganorum. ubi sub dei adjutorio
salvasset gentem xpianorum et deo annuente íecit. Ipso vero ibi
morante precepit illi dare suis bominibus vilias ad hereditandum
et domos ad edificaiidum. et vineas ad planlandum. et luissent
ille bereditates et libis suis. et uxoiibus et nepotibus super il-
bus auctoritatem et liliis et neplis.— Doação, feita pelo conde D.
Sesnando ao abbade Pedro, da berdade e egreja de S. Martinbo
na era de 1118, anuo de 1080, a foi. lo áo Livro Preto da Sede
Coimbra e impressa na Noticia Histórica do Mosteiro da Vaca-
rica de Miguel Ribeiro de Vasconcellos, e nas Questões Forenses
do sr. João Correia Ayres de Cainpos, n.» 1, pag. 42.
(a) Muitos d'esses documentos podem ver-se na Monarchia
Lusitana, P. 3.'» appendice; no Elucidário de Viterbo, verbo Al-
vasir; na Memoria IV 2)ara a Ilist. da Legislação e Costumes de
46
de 1091 {a), tendo governado 27 annos (ò). O tumulo
de D. Sesnando está collocado, como dissemos, jun-
eto da esquina occidental da fachada do norte da sé
velha, exposto aos estragos do rigor das estações.
Para sua melhor conservação quizeramos se recolhes-
se para o interior do templo. A inscripção nelle gra-
vada diz o seguinte:
AQUY . JAZ . HUN . QUE . KM . OUTRO . TENPO . FOY . GRANDE . BAROM
SABEDOR . E . MUITO . ELOQUENTE . AVONDADO E . RICO . E . AGORA
HE . PEQUENA . CINZA ENCARADA . EM . ESTE MOIMENTO
E COM . EL . JAZ . HUUM . SEU . SOBRINHO . DOS QUAES . HUN.
ERA . JÁ . VELHO . E . OUTHO . MANCEBO . E 0 NOME . DO . TIO
SESNANDO . E PEDRO . AVIA NOME . O . SOBRINHO.
O facto de serem allemães minúsculos os caracteres
Portugal, por António Caetano do Amaral; nas Dissertações Chro-
nologicas, por João Pedro Ribeiro; no Antiquário Conimbricense,
pelo sr. Manuel da Cruz Pereira Coutinho; no Tractado sobre as
quotas de fructos agrários denominadas rações, pelo mesmo au-
ctor; na Noticia Histórica do Mosteiro da Vacariça, por Mifjuel
Ribeiro de Vasconcellos; nas Questões Forenses, pelo sr. João
Correia Ayres de Campos, etc.
Os documentos redigidos propriamente por D. Sesnando s5o
notáveis pelo seu eslylo. Diz o sr. Alexandre Herculano {Htst.
de Portug., t. 1.°, nota II): «O estylo em que são redi^ndos os
documentos do conde Sesnando, oirerece, em geral, formulas di-
versas das que usavam os notários christãos. Alguns d'esses do-
cumentos parecem diplomas árabes escriptos com palavras lati-
nas. Não seria, até, conjectura demasiado atrevida suppor que
Sesnando fora mussulmano antes de passar ao serviço de Fer-
nando Magno.»
(a) Era mcxxvhu. Octauo cal. Septembris obiit Aluazil donnus
Sisnandus— C/íro«ícfl Gotfiorum nos Portrgalice Monvmenta His-
tórica, Scriptores, pag. 10.
(6) Relativamente a D. Sesnando, além dos logares citados,
vide um artigo no Escudo Christão (jornal que se publicou em
Lisboa em 1847) e outro artigo do sr. R. de Gusmão no Archivo
Pittoresco, vol. o.", pag. 330.
17
d'esta legenda leva a crer que ella seria esculpida desde
a epocha d'el-rei D. João i até á de D. Manuel. A
syntaxe e o estylo da inscripçao parece inculcarem
que ella não é uma composição original, mas traduc-
çâo do latim. Por baixo do tumulo vê-se na parede
uma pequena oxcavação quadrangular, talvez outr'
ora preenchida com uma lapide em que estivesse gra-
vada a inscripçao primitiva (a).
Fallando do conde D. Sesnando, diz fr. António
Brandão: — «Dizem que está sepultado no adro da sé
de Coimbra em um dos arcos da parede, o que devia
ser, porque naquelle tempo se não sepultavam dentro
das egrejas, nem ainda os maiores príncipes» (ò).
Conjecturamos que no tempo do bispo D. Jorge de
Almeida (1483-1543), fazendo-se importantes obras
na sé e no seu adro, seriam removidas as cinzas do
conde D. Sesnando e então collocadas em novo tu-
mulo.
Dos dois pórticos d'esta fachada^ ambos mandados
fazer pelo referido bispo D. Jorge, torna-se muito
apreciável o maior, que é de excellente fabrica e or-
namentado segundo o estylo da renascença com grande
profusão de miudezas e lavores de notável primor e
elegância. E' obra do grande architecto João de Cas-
tilho, que tão celebre se tornou pelo esmero e bom
gosto dos seus trabalhos. Assim o aííirma o sr. Fran-
cisco Adolpho de Varnhagen, que fallando deste ar-
tista insigne diz o seguinte: «Também esteve em Coim-
bra, pois sem duvida de seu tempo e suas são as por-
tas excrescentes de pedra de Ançã da sé velha. Os
bustos em medalhões, os arabescos ao divino, os ni-
chos de concha, os balaustres, os vasos, as pilastras
estriadas, a par de um arremedo das renascentes or-
(a) Vide Dissertações Chronologicas, por João Pedro Ribeiro,
t. !.•, documento n.» 1, nota 1.
(6) Monarchia Lusitana, P. 3.^, liv. 8.», cap. 4.«
18
dens dórica e corintliia, como tudo ahi se vê, nao
podem deixar de ser obra de Castilho, já meio con-
vertido ás doutrinas de Vitruvio (a)».
Um outro objecto assas notável, e de grande in-
teresse para antiquários, existe nesta fachada. E'
uma inscripção em caracteres arábicos. Este monu-
mento epigraphico era um dos argumentos em que
muitos se fundamentavam para asseverar que o tem-
plo da sé velha fura originariamente uma mesquita
de mouros; a inscripção, porém, está incompleta, e é
apenas fragmento de uma legenda que devia constar
de mais palavras, como verificou o distincto arabista
hespanhol, o sr. D. Pascual de Gayangos, o qual por
pedido do sr. dr. Filippe Simões a estudou e tradu-
ziu. A traducção do sr. Gayangos é a seguinte:
. . . edificou-o com solidez Ahmed Ben Ismael por
mandado de. . . (h).
Tudo leva a crer que a pedra em que se acham os
caracteres arábicos pertencera a outro edifício, cujos
materiaes foram aproveitados para a fabrica da sé.
O zimbório que se levanta sobre o cruzeiro, em
substituição do ura coruchéu da primitiva fundação,
foi mandado construir pelo bispo D. António de Vas-
concellos e Sousa no século xviif. E' outra obra que
destoa do estylo do monumento.
{a) Noticia Histórica e Descriptiva do Mosteiro de Belém.
{h) «A primeira palavra não a pôde decifrar o sr. Gayangos,
porém suppõe que signiíicará parede, muro de reforço ou obra
de estructura semelhante. TamLeni não chegou a ler o 'final. Além
de estar gasta do tempo a pedra, a inscripção, conforme entende
o sr. Gayangos, não está completa, mas é fragmento de outra que
deveria constar de duas ou mais regras, o que fazendo nuiilo thf-
íicil a leitura, levou o traductor a declarar que não tem grande
confiança na traducção.» Reliqiiias da Architectura Romaiio-By-
santina, pelo sr. dr* A. Filippe Simões. Nesta obra se pode ver
o fac- símile da inscripção.
9
O interior do tora pio nao desdiz da apparoncla
nobre e veneranda da sua parte externa, com quanto
grandes alterações, cfíectuadas em varias epochas,
lho tenham prejudicado a feição primitiva. A sua ar-
chitectura simples mas magostosa, o seu aspecto de
ancianidade, uma claridade moderada, tão propicia
aos actos e sentimentos piedosos, tudo nos enche a
alma, como disso Garrett, de um certo não-sei-que
entro goso, respeito, devoção, melancolia e suavidade,
que podemos aili estar horas esquecidas sem nos lem-
brar nem importar mais nada (a).
O templo é dividido em tros naves, a cada uma
das quaes corresponde na frente, passado o cruzeiro,
uma capoUa. Ao longo das naves lateraes veem-se
algumas capellas e altares adornadas de obra de ta-
lha do século XVII.
O coro^ construido de madeira de carvalho, fica
superior á entrada no primeiro terço da nave central
e a meia altura d'olla. E' obra do bispo D. Affonso
de Castello Branco (158Õ-1615), cujas armas, compos-
tas de um leão rompente, se vêem no meio do tecto.
São muitos e importantes os monumentos, inscri-
pçoes notáveis e objectos d'arte dignos de observa-
ção que se encontram por todo o templo. Logo á en-
trada principal está o mais antigo monumento epi-
graphico do interior; do edifício. E' uma inscripção
do anno de 1290 gravada numa pedra embebida na
parede por traz da meia porta, ao lado direito de
quem entra. Diz o seguinte:
ERA. MILLESIMA. TRECKNTKSIMA VIGÉSIMA OGTAVA SEXTO. NONAS.
OCTOBRIS. OBIIT. DONNUS. PASCHASIUS. NUNIS. ARCIIIDIACHONUS. DE
SENA IN. ECCLESIA. COLIMBRIENSI. ET. JACET INTUS. IN. ECCLESiA.
COLIMBRIE. CIRCA. PAVIMENTUM. PORTE. OCCIDENTALIS IPSIUS. EG-
CLESIE CUJUS. ANIMA. REQUIESGAT. IN. PAGE. AMEN. (6).
(a) Obras de Garrett, Lyrica, t. 16." da 3.^ edição.
(6) No Antiquário Conimbricense, n.** 2, vem o fac-simile d'esta
20
Próximo da cornija da primeira columna da nave
do lado da epistola, e juncto do arco da primeira
capoUa está outra lapide com esta legenda:
TERTIO. DIE. MENSIS. SETEMBRIS. DE. ERA MILLESIMA. TRECENTESIMA
OCTOGÉSIMA. TERTIA. OBriT. DOMNUS. ANDREAS. JOHANIS. CAN-
TOR. HUJUS. ECCLESIE. NEPOS. DOMNI, ACCURSII. ET
DOMNI. GUILHELMI. MILITUM. MAGISTROS. IX. JURE. CA-
NÓNICO. ET. CIVILI. CUJUS. ANIMA. REQUIESCAT. IN PACE. (a).
Os bellos azulejos que revestem as columnas e parte
das paredes do templo, são dignos de reparo pelos
seus lavores e desenhos no estylo árabe e pelo seu
brilhante esmalte. Mandou-os vir de Sevilha o bispo
D. Jorge d'Almeida (b).
Nos altares lateraes encontram-se algumas pintu-
ras, duas das quaes têm sido elogiadas por apreciado-
res competentes. Uma d'estas é a imagem da rainha
Santa Isabel, situada em a nave do lado da epistola,
acerca da qual diz o seguinte o conde A. Raczynski:
«Parmi les quatro grandes peintures qu'on voit dans
la cathédrale, la plus interessante, sans être pour cela
bien supérieure à toutes les autres, est le portrait de
la sainte reine Isabelle; il est de grandeur naturelle,
et incontestableraent d'une époque bien postérieure à
inscripção, que reproduzimos sem abreviaturas. Ahi e no Dis-
curso a favor do Cabido, Prova n." 60, vôni algumas noticias,
mas pouco importantes, relativas a Paschasio ?sunes.
(a) A inscripção original tem muitas abreviaturas. "So Antiquário
Conimbricense, n.° 4, se encontra o fac-simile d'esta legenda e
algumas noticias, aliás pouco interessantes, relativas a André Jo3o.
(6) «M. W. H. Hairisson dit que son revétement de tuiles
émaillées (azidejos), qu'il croit fahriquées en Flandres, fait un cu-
rieux eífet.» — Portugal, por Ferdinand Denis, pag. 388. De um
manuscripto existente na bibliotlieca nacional de Lisboa, intitu-
lado— Extractos vários tirados do Real Archivo da Torre do Tom-
bo, relativos á Historia Ecclesiastica do Bispado de Coimbra,
consta que o bispo mandou vir os azulejos de Sevilha e não de
Flandres, como julgou Harrisson.
^21
celle ou elle vivait (1280). Ce portrait n'a certaine-
ment pas deux cents ans» (a).
A outra, que fica em a nave do lado do evangelho,
representa Sancta Úrsula, e mereceu os gabos de Mr.
Chavignaud, que disse d'ella: «Cest la première fois
que je rencontre en Portugal le portrait de notre sainte
martyre, et cette fois ce n'est pas une peinture fla-
mande, mais bien Foeuvre d'un peintre portugais. La
sainte martyre, dans toute la splendeur de la beauté
morale et physiquo, occupe le centre du tableau. Ses
yeux, ou brillent la foi et Texaltation d'une belle ame
qui s'est donnée volontairement à Dieu, sont leves
vers les cieux. EUe tient dans la main droite une
harape au sommet de laquelle flotte la blanche ban-
nière sur laquelle se lit Christus et qu'elle brandit
majestueuseraent. Les compagnes sont martyrisées à
ses pieds, tandis que de petits groups d'anges, répan-
dus dans un ciei transparent, jettent des fleurs aux
saintes filies. Dans le fond du tableau on voit le Rhin
majestueux, ser lequel flottent les barques delaissées
sur le rivage. Ce tableau parait être du commence-
ment du xvi.^ siècle. II m'a vivement interesse» (b).
No topo do cruzeiro do lado do evangelho, debaixo
de um arco aberto na parede, está um antigo monu-
mento, em cuja parte superior se vê estendido o vulto
de um prelado com mitra na cabeça e as mãos cru-
zadas sobre o peito. E' o tumulo de um illustre bispo
de Coimbra, D. Egas Fafes, descendente por linha
(a) Les Arts en Portugal.
(6) Jornal do Porto, n.» 105 de 10 de maio de 1866. M. Cha-
vignaud accrescenta ainda: «M. le comle de Raczynskia vu dans
la sainte Ursule le portrait de la reine Isabel. 11 a commis une
legère erreur qu'il lui será facile de rectiíier dans la nouvelle
édition q'il doit donner des Arts en Portugal». Em erro caiu Mr.
Chavignaud, pois na sé velha existe tamliem, como dissemos, a
pintura que representa Sancta Isabel.
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masculina do famoso alferes do condo D. Henrique,
D. Fafes Luy (a). Foi assumpto ao episcopado do
Coimbra no íim do anno de 1246. Negócios impor-
tantes (b) o levaram a Roma em 1266, e ahi alcan-
çou a prelazia compostellana. De caminho para a sua
nova diocese, falleceu em Montpellier no dia 9 de
março de 1268 (c). A sua fymilia lhe trouxe o cadá-
ver para a sé de Coimbra.
Juncto do tumulo do bispo D. Egas está outro do
mesmo gosto, onde repousam as cinzas de D. Ve-
taça, infanta da Grécia. Esta illustre dama, por parte
de sua mãe Irene, era neta do imperador da Grécia
Theodoro Lascaro, o menor. A esto imperador suc-
cedeu seu filho João, irmão de Irene, o qual era do
poucos annos quando seu pae morreu. Miguel Faleo-
logo usurpou-lhe o império, que andava na casa e
linhagem dos Lascares, e para mais se assegurar na
Bua posse fez arrancar os olhos ao desditoso moço (d),
Irene foi dada em casamento pelo perseguidor do
Bua familia ao conde Willelmo de Vintemilla, geno-
vez, e com elle veiu residir na sua casa de Génova (e).
D'este casamento houve, além d'outros filhos, a D. Ve-
taça. Irene, depois de enviuvar, estabeleceu-se em Ara-
gão, para onde trouxe comsigo sua filha. Nesta corte
foi I). Yetaça muito acceita da familia real, tendo com
ella grande privança. Na infanta D. Isabel, filha de
D. Pedro iii, encontrou uma amiga predilecta e pro-
(fl) Vide o Nobiliário attribiiido ao conde D. Pedro, tit. 39.
{h) Vide Historia de Portugal, por Alexandre Herculano.
(c) Vide Agiologio Lusitano, t. 2, com. ao dia 9 de março,
e a Historia Seráfica, por fr. Manuel da Esperança, P. 1, Uv.
15, cap. 40, etc.
(d) Historia Dyzanlina dtiplici commentario illustrata. . . Au-
ctore Cario du Fresne Domino du Canqe — Venetiis, 1729, pag.
190.
{e) Vide Nicephori Gregoro' Bomana^, hoc est Byzantina; His-
ioricv lihri XI. • . (Luletíse, ISCô) fl. 13.
23
tectora desvelada. A mesma D. Isabel, quando veiu
para Portugal para casar com el-rei D. Diniz (1282),
a trouxe em sua companhia como sua dama, e pos-
teriormente a fez aia de seu filho, o infante D. Af-
fonso, que depois foi rei, o quarto d'esto nome. D.
Vetaça criou D. Constança, filha do mesmo D. Af-
fonso, como aia; acompanhou-a como camareira mór
ao reino de Castella, onde a serviu por algum tem-
po; e ahi criou também sua filha, a infanta D. Leo-
nor. El-rei D. Fernando iv do Castella lhe doou a
villa de Padrassa em 20 de fevereiro de 1311, e no
padrão da doação dizia fazer-lho esta mercê jpor la
cvianza que jizo en la Reina Dona Constança mi
mucjeVy y en la infanta Dona Leonor nuestra Jija(a).
Esta rainha D. Constança, pouco antes de morrer em
Sahagun, a fez tutora de seus filhos D. Pedro e D. João.
Regressando a Portugal, veiu D. Vetaça residir na
cidade de Coimbra. A rainha Santa Isabel no seu
segundo testamento (ò), a nomeou entre os seus tes-
tamenteiros e lhe destinou um legado de cem marcos
do prata. D. Vetaça casou em Portugal com Martim
Annes, dos de Soverosa, fidalgo muito illustre. Por
seu testamento, feito em 21 de abril de 1336, deixou
D. Vetaça ao cabido da sé de Coimbra a maior parte
de seus avultados bens.
O tumulo em que jazem os restos desta nobre se-
nhora tem na parte superior uma estatua de gros-
seiro lavor, que a representa com hábitos religio-
sos (c), a cabeça sobre uma almofada sustentada por
dois anjos o aos pés dois rafeiros. Na face anterior
(a) Monarchia Lusitana, liv. 17.", cap. 40."
(6) Memorias das Rainhas de Portugal, por F. F. de la Figa-
nière.
(c) Talvez por ter sido irmã da ordem de S. Francisco. Vide
Historia Seráfica, por fr. Manuel da Esperança, P. 2.*, pag. 270,
e lambem Jardim de Portugal, por fr. Luiz dos Anjos.
24
do moimento, única patente, veem-se entre vários
ornatos três águias em relevo, cada uma com duas
cabeças. A águia assim representada symbolisa a
divisão do Império em oriental e occidental, o era
a insígnia dos imperadores. Descendendo D. Vetaça
da casa imperial da Grécia, bem cabido é no seu tu-
mulo este brasão ou emblema.
Segundo Goellio Gasco, havia no tumulo esta le-
genda:
AQUI JAZ DONA BATAÇA, NETA DO IMPERADOR DA GRÉCIA (ã).
A capella mór e as duas que lhe ficam aos lados
— a de S. Pedro e a do Santissimo, todas encerram
trabalhos artisticos de grande merecimento.
O retábulo de pedra da capella de S. Pedro, em
cuja parte principal se vê representado o martyrio
d'este santo, é de excellente esculptura, correcta e
elegantemente trabalhado no estylo do renascimento;
e quiçá se deve attribuir ao mesmo delicado escopro
que lavrou as portas lateraes da egreja. Como ellas,
foi mandado fazer pelo bispo D. Jorge d'Almeida, o
qual jaz sepultado nesta capella sob uma campa de
mármore, que tem gravado este epitaphio:
DIVINI . NOMINIS .
PIETATE . EPISCOPVS .
COMES. GEORGIVS
DALMEIDA. HIC. SITVS
VIXIT. ANNIS. LXXXV
OBIIT. VIII KLS. SEX TILES.
ANN. D. M. D. XXXXIII
ANNIS . LXII VTRAQZ
DIGMTATE . PR^DITVS
(a) Noticias minuciosa? de D. Vetara cncontram-se ainda no
Ponoraiva de 4842, pag. 122; nos AiiJines do Mvnicipio de Sanf
lago de Cocem, pelo sr. António de Macedo e Silva (dos quaes tia
já dua8 edições); na Collecçúo dos Documentos e Mem. da Acade^
25
Na mesma campa^ que é orlada de uma formosa
tarja, está esculpido o brasão do illustre bispo — es-
cudo esquartelado, tendo no primeiro e quarto cam-
po, de vermelho, uma cruz doble entre seis besantes
de ouro; no segundo e terceiro campo, de prata, leão
de purpura.
D. Jorge de Almeida, filho do primeiro conde de
Abrantes D. Lopo de Almeida, e irmão do grande
vice-rei da índia D. Francisco de Almeida, foi o 38.*
dos bispos de Coimbra depois que D. Fernando Magno
conquistou aos mouros esta cidade. No conclave que
em seu tempo se celebrou em Roma, recahiram em
D. Jorge muitos votos para supremo pastor da egre-
ja (a). Foi um dos prelados que o summo pontifico
Paulo III nomeou inquisidores-móres d'este reino pela
bulia Venerabilibus fratribus Colimbriensi, et Lame*
cenci, ac Ceptensi Episcopis de 23 de maio de 1536 (6).
Quando el-rei D. João ii foi com o príncipe D. Af-
fonso a Extremoz no anno de 1490 para conduzir a
princeza D. Isabel, foi D. Jorge de Almeida em com-
panhia do monarcha; e também lhe assistiu nos seus
últimos momentos (c). No anno de 1512 baptizou em
Lisboa o infante D. Henrique, que depois foi cardeal
e rei (d). Falleceu D. Jorge de Almeida no dia 25
de julho de 1543 com 85 annos de edade, havendo
mia Real de Hist., t. 4.», conferencia de 31 de julho de 1721; e
nos Anales de la Corona de Aragorij por Geronyno Çurita, t. 1.»
in fine; etc.
(a) Agiologio Lusitano, tomo iv, commentario ao dia 25 de
julho, letra C.
(6) Catalogo dos Inquisidores de Coimbraj na Collecção dos Do-
cumentos e Memorias da Academia Real de Historia do anno de
1723.
(c) Chronica de D. João II, por Garcia de Rezende, cap. 121.
{d} Europa Portugueza, por Faria e Sousa, tomo 2.% parle 4.%
cap. I.», pag. 529.
2G
governado a sua diocese pelo dilatado espaço do GO
ou 62.
O bispo D. Jorge tomou a peito a meritória em-
presa de ornar esplendidamente a sua sé, o foi por
isso que mandou pôr no arco cruzeiro esta legenda
tirada dos Psalmos, cap. 2õ, v. 8: Domine, dilexi
decorem domus tiice (a).
Nas alfaias o obras sumptuosas com que dotou e
ennobreceu a cathedral, executadas quando as bellas
artes em o nosso paiz chegavam a notável grau do
florescência e esplendor, encontra-se o que nesta ci-
dade ha do mais delicado em esculptura em pedra e
madeira e no trabalho do ourivesaria, tanto no es-
tylo gothico o manoelino, como no clássico do renas-
cimento.
Entre essas bellezas artísticas distingue-se singu-
larmente o famoso retábulo de talha da capella mór,
obrado ao findar o século xv ou nos principies do
XVI. E' elle na verdade um trabalho de apuradissimo
gosto. Graves e auctorisados escriptores lhe têm pro-
digalisado os maiores elogios, celebrando justamente
a sua belleza. Gasco diz ser este retábulo o mais cu-
rioso e subtil que se sabe haver em Hespanha (ò);
o conde Raczynski o considera do mais puro estylo
gothico (c); Garrett disse que é o mais tino e per-
feito e delicado lavor gothico em talha de que tinha
noticia e talvez que exista (cZ); e o sr. Vilhena Bar-
bosa classifica-o entre as obras que revelam a um
tempo na prodigiosa variedade de desenhos uma ima-
ginação viva e fecunda, na perfeição do trabalho
aquelle estudo e esmero que só podem nascer do
(a) Historia Breve de Coimbra, por Bernardo de Brito Bote-
lho.
(6) Conquista, antiguidade e nobreza . . de Coimbra, cap. xxii.
(c) Les Arts en Portugal.
(d) Obras, Lyrica, loino xvi da 3.« edição, pag. 22.
27
amor pela arto, o finalmente, na concepção de tan-
tos primores esse gosto apurado que caracterisa em
qualquer nação a florescência das artes (a).
A parte central do retábulo é occupada por um
interessante grupo do figuras de vulto, em que se
representa a Assumpção da Virgem, Além d'este gru-
po distinguem-se ainda grande numero de estatuetas
de vários tamanhos em formosos nichos, entre as
quaes se tornam mais notáveis as de dois evangellis-
tas. Um d'elles, sentado em rica e vistosa cadeira,
revestido de roupagens habilmente panejadas, está es-
crevendo num livro e tem juncto de si, em attitudo
de lhe ministrar a tinta, ura formoso mancebo de ricos
trajos e longa cabelleira solta. Tudo o mais de que
se compõe o retábulo merece minucioso exame. A
parte ornamental é profusa e delicadíssima, deixando
enthusiasticamento enlevados quantos observam esta
obra prima de esculptura, que temos por singular no
paiz. Não devem escapar ao exame do observador
algumas engraçadas figuras do género grotesco, que
por vários pontos se descobrem.
As paredes lateraes da capella mór e a sua abo-
bada acham-se também revestidas de obra de talha,
a qual pelos seus lavores mais carregados, mas ainda
assim dignos de apreço, indica ser posterior ao retá-
bulo cerca de dois séculos.
Juncto dos degraus da capella mór vê-se uma la-
pide sepulchral que se torna notável por haver sido pi-
cado o brasão que tem insculpido — escudo oval orlado
pelo letreiro bispo Conde e atravessado por cinco
faixas ondeadas de agua e tendo na do meio um delfim
nadante. Era o brasão do bispo D. Joanne Mendes de
Távora, que ali jaz^ antepassado da familía Távora,
que ficou implicada na tentativa de assassinato con-
(a) Panorama de 1855, pag. 386.
28
tra el-roi D. José em a noute de 3 de setembro de
1758. O brasão, por pertencer a pessoa d'este appel-
lido, foi picado om virtude de uma das disposições
da terrivel sentença condemnatoria dos réus d'aquelle
attentado, proferida pela suprema juncta da Inconfi-
dência em 12 de janeiro de 1759.
A capella do Santissimo é apreciável pela sua forma
e pelo esmero e bom effeito das esculpturas em pedra
que a adornara. Com razão diz fr. Agostinho de Santa
Maria que esta capella é de galante e excellente
architectura e tudo quanto nella se vê preciosamente
obrado (a). E' quasi circular e guarnecem-n-a duas
ordens de nichos, nos quaes estão as estatuas, quasi
de tamanho natui*al, de Christo, dos doze apóstolos e
outras sinzeladas com notável correcção (b). A abo-
bada^ formando uma cúpula 'hemispherica, também
se ostenta elegante e aprimorada pelos seus medalhões
6 outros delicados lavores. Nella se vê esculpida a
data de 1566.
Mandou construir esta capella o bispo D. João
Soares, que governou o bispado desde 1545 até 1572.
Fora confessor d'el-rei D. João iii, seu pregador, es-
moler e mestre de seus filhos D. Filippe e D. João.
Sendo deputado do Santo Ofíicio, foi assumpto á mi-
tra de Coimbra em 22 de maio de 1545. Conduziu
com grande apparato da cidade de Badajoz á de
Lisboa a princeza D. Joanna d'Austria, filha de Car-
los V, quando V3Íu a desposar-se com o principe D.
João. Foi um dos prelados que el-rei D. Sebastião
(a) Santuário Mariano, vol. 4.°.
(6) Também estava (l'antes nesta capella, e hoje conserva-se
em sitio mais recôndito, uma imagem dft Nossa Senhora com o
ventre consideravelmente volumoso; da qual dá uma curiosa no-
ticia fr. Agostinho de Santa Maria no Santuário Mariano, t.
4.*, pag. 373. Na mesma obra e t. pag. 616 vem também noticia
de outra imagem de Nossa Senhora, que o bispo D. João de Mello
mandou fazer.
29
mandou ao concilio tridentino, e neste sagrado con-
gresso se distinguiu muito por sua eloquência e pro-
fundos conhecimentos. Concluído o concilio, visitou
os logares santos de Jerusalém, onde deixou ao tem-
plo do Santo Sepulchro um precioso ornamento. D.
ir. João Soares jaz na capella do Sanctissimo, ou
próximo d'ella, sob uma campa rasa. Nenhum bra-
zão, ou epitaphio, nos indica o logar da sua sepul-
tura, ou porque ella os não teve, ou porque se des-
gastaram (a).
Outro objecto recommendavel que existe no cru-
zeiro é o tumulo do bispo D. Tiburcio, situado do
lado da epistola, sob um arco aberto na parede. Nelle
se vê em relevo, mas já bastante desgastada pelo ro-
çar de seis séculos, a figura do bispo, paramentado de
pontifical, e com as mãos sobre o peito. O prelado,
cujas cinzas encerra este monumento, é de grande ce-
lebridade na historia pelo muito que figurou na con-
tenda da desthronisação de D. Sancho II. Foi D. Ti-
burcio quem apresentou ao papa Innocencio IV, por
occasião do concilio celebrado em Leão no anno do
1245, as representações, informações e documentos,
tendentes a alcançar-se que o papa privasse aquelle
monarcha do governo do reino, e lhe substituísse seu
irmão o conde do Bolonha. Este proceder de D. Ti-
burcio acarretou-lhe os ódios de D. Sancho e de seus
partidários, pelo que o prelado desleal teve de soffrer
não pequenos trabalhos e privações (6).
Próximo do tumulo do bispo D. Tiburcio fica a
porta da sacristia, casa de boa fabrica, espaçosa,
(a) Mais largas noticias de D. fr. João Soares encontram-se na
Biblioth. Líisit. por Barbosa; nas Mem. para a Hist. de D. Sebas-
tião, pelo mesmo, t. 3.», pag. 465; na Vida de D. Fr. Bartholo-
meu dos Martyres, por Sousa, liv. 2.», cap. 17.*; no Dicc. Bibliogr,,
peio sr. I. F. da Silva; etc.
(&) Vide Noticia Hist. do Mosteiro da Vacariça, por Vascon-
cellos, continuação da 2." parte.
30
com abobada de pedra lindamente lavrada, e uma
vistosa fonte de mármores. Deve-se a fabrica da sa-
cristia ao bispo D. Aífonso de Castello Branco, que
nesta obra, na do coro, e em outras que fez na sé
gastou noventa e sete mil cruzados (a).
A's excellencias, primores e bellezas doeste templo,
e á memoria de illustres personagens, cujos túmulos
alli se encontram (6), accrescem ainda para tornar
mais celebre e valioso este monumento os notáveis
successos que com elle têm ligação.
Aquelle que aprecia as tradições da historia pátria,
visitando a sé velha e evocando á memoria os im-
portantes factos succedidos no sou recinto^ achará, por
certo, motivos para muitas e mui graves recorda-
ções.
Neste sumptuoso templo foram coroados pelo bispo
D. Martinho com solemne pompa e apparato, no dia
9 de dezembro de 118Õ, el-rei D. Sancho i e a rainha
sua mulher (c).
Alli se celebrou pela primeira vez em Portugal,
(a) Assim se diz num manuscripto intitulado Vida e morte do
heroe D. Affonso de Castello Branco, obra de João d'Almeida Soares
e existente na bibliotheca de Évora. Acerca d'este manuscripto
veja-se no Conimbricense n." 1001 um artigo do sr. dr. A. Filippe
Simões.
{b) Além daquellas de que jcá falíamos existem na sé velha ou-
tras muitas sepulturas notáveis^ de que seria longo tractar. O chão
do templo é lageado em grande parte por lapides sepulcraes, car-
regadas debrazões e epitaphios. Muitas d'estas paginas de pedra,
que porventura fatiavam de nomes gloriosos, bemquistos de Deus
e respeitados dos homens, já não se podem decifrar, pois que os
pés dos vivos as tôm apagado quasi ue todo.
No Catalogo dos Bispos de Coimbra por Ferreira, na Conquista...
de Coimbra, ])or Gasco, cap. 20.», \m Noticia Hist. do Mosteiro da
Vacariça, por Vasconcellos, p. 2.'' e em um artigo do sr. A. M.
Seabra d'Albuquerque, inserto na Estréa Litteraria n.° 9, encon-
Iram-se noticias de muitas pessoas qne jazem na sé velha.
(c) Vide Mon. Lusit., P. 4, cap. i.
31
era tempo de el-rei D'. Diniz e por industria do bispo
D. Raymundo, a festa da Conceição Immaculada de
Nossa Senhora, que depois se estendeu ás outras ca-
thedraes do reino (a).
Alli, no anno de 1361, se leu, por ordem de el-roi
D. Pedro i, o instrumento da declaração jurada, que
fizera em Cantanhede em presença de vários prela-
dos e grandes do reino^ de que a formosa D. Ignez
de Castro fora sua legitima e verdadeira esposa (6).
Alli, no dia 3 do março de 1385, quando veiu para
assistir ás cortes que três dias depois lhe deram a
coroa, foi receLido com honras de monarcha o mestre
de Aviz, que depois se appeUidou el-rei D. João i (c).
Alli, no dia G de maio do 1449, foi encommendar-
se, em suas angustias, á Consoladora dos aíflictos, o
infeliz duque de Coimbra, D. Pedro, que fora as de-
licias da pátria^ e que poucos dias depois, victima
de mal fundados ódios e mesquinhas intrigas, pereceu
nos infames plainos de Alfarrobeira (d),
Alli, no dia 13 de outubro de 1Õ70, depois de ter
ouvido á porta da ponte a brilhante allocuçao que em
nome da cidade lho dirigiu Jorge do Sá Soutto Maior,
foi fazer sua oração ao Omnipotente, o valoroso e in-
feliz D. Sebastião, indo depois hospedar-se no paço
episcopal (é).
(a) Vide Mon. LusiL P. 6.% liv. 19.^ cap. 22.
(6) Vide Chron. dos Coneg. Regr., P. 2.% liv. 9.», cap. 22,
pag. 242.
(f) Vide Memorias de D. João 1 por José Soares da Silva, liv.
1.0, cap. 43.
(d) Vide Chron. de D. Áffonso V, por Ruy de Pina {Inéditos
de Hist. Portugueza) cap. 117.
(e) Vide Portugal Cuidadoso, por Bayão, pag. 170.
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